sexta-feira, dezembro 30, 2011

625 - Antonio Lobo Antunes


Pastos na testa
Terço na mão
Uma botija
Chá de limão
Zaragatoas
Vinho com mel
Três aspirinas
Creme na pele
Dói-me a garganta
Chamo a mulher
Ai, Lurdes, Lurdes
Que vou morrer
Mede-me a febre
Olha-me a goela
Cala os miúdos
Fecha a janela
Não quero canja
Nem a salada
Ai Lurdes, Lurdes
Não vales nada
Se tu sonhasses
Como me sinto
Já vejo a morte
Nunca te minto
Já vejo o inferno
Chamas diabos
Anjos estranhos
Cornos e rabos
Tigres sem listas
Bodes de tranças
Choros de corujas
Risos de grilo
Ai Lurdes, Lurdes
Que foi aquilo
Não é a chuva
No meu postigo
Ai Lurdes, Lurdes
Fica comigo
Não é o vento
A cirandar
Nem são as vozes
Que vêm do mar
Não é o pingo
De uma torneira
Põe-me a santinha
À cabeceira
Compõe-me a colcha
Fala ao prior
Pousa o Jesus
No cobertor
Chama o doutor
Passa a chamada
Ai Lurdes, Lurdes
Nem dás por nada
Faz-me tisanas
E pão de ló
Não te levantes
Que fico só
Aqui sozinho
A apodrecer
Ai Lurdes, Lurdes
Que vou morrer

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sexta-feira, dezembro 23, 2011

624 - Natal...

NATAL DOS MENDIGOS
(ou Natal dos Simples)

Vamos cantar as janeiras
Vamos cantar as janeiras
Por esses quintais adentro vamos
Às raparigas solteiras

Vamos cantar orvalhadas
Vamos cantar orvalhadas
Por esses quintais adentro vamos
Às raparigas casadas

Vira o vento e muda a sorte
Vira o vento e muda a sorte
Por aqueles olivais perdido
Foi-se embora o vento norte

Muita neve cai na serra
Muita neve cai na serra
Só se lembra dos caminhos velhos
Quem tem saudades da terra

Quem tem a candeia acesa
Quem tem a candeia acesa
Rabanadas pão e vinho novo
Matava a fome à pobreza

Já nos cansa esta lonjura
Já nos cansa esta loujura
Só se lembra dos caminhos velhos
Quem anda à noite à `ventura

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Para os meus @migos da Aldeia

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"Vira o vento e vira a sorte.
Talvez num futuro próximo
Se houver inteligência
Vá embora a ingerência"

Para todos, um Natal de Paz.

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domingo, dezembro 18, 2011

623 - O Voo...

Quando entrou naquele avião, Abdul sabia o que o esperava. Tinha recebido instruções muito precisas (e muito repetidas) sobre a sua missão. Não ia sózinho mas o papel principal era dele. Os seus companheiros apenas iriam cumprir ordens suas. O voo nº tal (e que importa aqui?) sairía de Newark para S.Francisco. Uma viagem normalissima. Só que naquela manhã estava destinada a ser diferente. Aquele avião fazia parte de um plano. Destruir um sistema.
(A dada altura, soube-se, dois aviões tinham causado uma catástrofe em New York...)


Abdul, como previsto, sentou-se num lugar junto ao corredor. Toda a liberdade para se deslocar quando chegasse a hora. Banco de três lugares. O do meio ia vazio. À janela, uma jovem. Muito bela. Vestido um pouco curto (demasiado ousado para as convicções de Abdul) computador no colo, ía, por vezes, olhando a janela, outras vezes mirando-o, de soslaio. Talvez admirada pelo seu aspecto um pouco diferente (afinal, era árabe, embora houvesse tantos naquele país).
Houve, nas várias vezes em que os olhares se cruzaram, vários clics.

Sarah, a jovem da janela, ia visitar seu pai. Veterano da Guerra do Vietnam, estava prevista uma homenagem, em S. Francisco, a antigos combatentes. Estava um pouco nervosa, pois embora desejasse, e muito, participar na homenagem, já não se relacionava com o pai há muito tempo. Mas pensou que lá chegando tudo se resolveria.
E o jovem que viajava perto de si? Pareceu-lhe também nervoso e percebeu que repetidamente orava baixinho numa língua estranha.
Sarah levantou-se e foi aos lavabos. Teve que lhe pedir licença, ele olhou-a, curioso, e deixou espaço suficiente para que nem se tocassem. Quando Abdul a viu percorrer o corredor sentiu uma sensação muito estranha. Naquela altura esqueceu tudo o que o trazia alí, esqueceu os seus companheiros (já lhe tinham feito alguns sinais, esperando as ordens que ele transmitiria).
Abdul pressentiu que, naquele preciso momento, algo muito importante tinha mudado na sua vida...
Sarah voltou e ao passar de novo por si, sorriu-lhe. O sorriso mais lindo que Abdul já alguma vez vira.

(Havia agitação nos restantes passageiros. Muitos já sabíam dos atentados de New York, naquela manhã. E suspeitavam, com um terror estampado em todos os rostos, que o destino daquele voo estava ligado aos outros acontecimentos)

Abdul, crente de Alah e com um juramento feito, tomou finalmente a sua decisão. Com uma coragem muito superior à necessária para fazer colidir um avião com o Capitólio (era esse o plano) mudou para o lugar do meio, agarrou na mão de Sarah e só conseguiu dizer:
A minha escolha és tu!


A partir do filme Voo 93...

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